Vivemos num mundo marcado por todo tipo de violência contra a pessoa humana: guerras, assassinatos, chacinas, sequestros, miséria, imoralidades, atentados terroristas, corrupção, impunidade, banalização do crime pelos meios de comunicação, crimes ambientais e sociais, catástrofes naturais etc.
Ante o sofrimento humano, parece que Deus se silencia. Na verdade, não é bem assim. Deus é Criador, mas também é Providente. Ele criou tudo com poder, sabedoria e amor e a tudo sustenta com sua providência, pois vê a favor de todas as suas criaturas, sobretudo os seres humanos. A divina providência consiste no fato de Deus não apenas ter criado tudo o que existe, mas estar sempre envolvendo com sua solicitude a história de cada um de nós e a do mundo inteiro.
Podemos falar de providência geral ou natural, em relação a todas as criaturas, e de providência especial ou sobrenatural, em relação aos anjos e aos homens. Toda a Sagrada Escritura está perpassada pela ideia da providência divina, sobretudo quando apresenta Deus como um Pai bondoso (cf. Dt 4,7; Sb 14,3; Jo 3,16; Mt 6, 25-34; 7,7-11; 10,30s; 11,25).
Contudo, a providência divina não suprime a liberdade humana e é por isso que o homem pode resistir a Deus e seguir apenas seus impulsos, suscitando o processo da iniquidade, da desordem, a luta das trevas contra a luz (cf. Jo 1,5; 3,19; Lc 22,53; Rm 13,12; Ef 6,12). Disso resulta que a providência divina pode coexistir com o mal no mundo.
Mas como relacionar a verdade da providência divina com a existência do mal? Será o mal uma fatalidade ou uma ilusão? Se o mal é uma fatalidade, não há providência divina que dele nos liberte; o jeito é aguentá-lo passiva e resignadamente. Se o mal é uma ilusão, cabe ao próprio homem vencê-lo, individual ou coletivamente, por diversos caminhos possíveis de auto-realização.
Afinal de contas, o que é o mal? Aristóteles, em sua Metafísica, assim o define: o mal é a falta de um bem que um ser deveria ter e não tem. Ele parte do princípio de que o mal não existe enquanto um ser criado por Deus. Para ele, Deus é o autor de todos os seres, mas não o autor do mal, visto que o mal não é um ser em si mesmo. Por exemplo: se a maldade e a cegueira – que se opõem à virtude e à visão – não são algo que exista por si mesmas na natureza, mas a falta de qualidades próprias de determinado ser, então, não podemos atribuir a Deus a autoria do mal: Deus é o autor da visão, não da cegueira; do que existe, não do que falta (cf. Patrologia Grega, 45).
Que fique bem claro: Aristóteles afirmou que o mal não existe em si mesmo e não que o mal não existe. Tanto é que há duas categorias de mal: o sofrimento e a maldade. O sofrimento é o mal NO homem, contrário à sua vontade; é a dor, a miséria, a aflição, a morte. A maldade é o mal DO homem, da sua vontade; é o crime, a iniquidade, o pecado. Estes dois aspectos do mal estão sempre presentes quais duas faces da mesma realidade.
Só a revelação judeu-cristã apresenta a estreita relação que há entre maldade e sofrimento e explique uma pelo outro. Para ela o mal não é uma ilusão. Embora passageiro, ele existe. Mas nada escapa à providência divina. Não há fatalidade acima nem ao lado do plano de Deus. Não há resistências absolutas e eternas a Deus. Mesmo as limitações próprias das criaturas estão sob o domínio da divina providência. Não cai um fio de cabelo sem o consentimento de Deus. Também sob a divina providência estão os movimentos do livre arbítrio (cf. Pr 21,21). Até o demônio precisa da permissão divina para agir segundo a sua vontade transviada (cf. Jo 1,12; Lc 22,31).
O mal não é ilusão nem algo absoluto, que tenha um princípio eterno. Nem mesmo será vencido somente no fim. Desde sempre esteve sob o controle do Poder do Pai, da Sabedoria do Filho e do Amor do Espírito Santo. Se ainda não foi impedido no universo é porque, por meio dele, perpassa a redenção, a graça, a promessa da vida eterna. Não que Deus o queira, mas Deus o permite, o consente, uma vez que até o mal pode concorrer para o bem dos filhos de Deus (cf. Rm 8,28). Os sofrimentos podem gerar bem-aventuranças (cf. Mt 5,5.10s) ou até podem ser ocasião de maior graça (cf. Rm 5,17-20; 11,32). A criatura não está sozinha diante do mistério do mal. Ela não precisa desesperar-se, nem mesmo tentar, através de um esforço sobre-humano, sua própria libertação. Ela está sob uma providência, que lhe oferece a participação no itinerário de Cristo, que nos prepara um lugar no Reino de Deus (cf. Jo 14,2; Hb 6,20; 10,19).
Esse Reino começa a ser realizado na vida presente, para os que estão em Cristo, sendo que nada poderá separá-los do amor de Deus (cf. Rm 8,38s). E, desde agora, devem manifestar sua esperança na transformação do mundo, lutando contra o pecado e seus efeitos, concretizando a Boa Nova da libertação (cf. Mt 25,31-46; GS 32; 38s).
“Tal é o sentido do sofrimento: verdadeiramente sobrenatural e, ao mesmo tempo, humano; é sobrenatural, porque se radica no mistério divino da Redenção do mundo; e é também profundamente humano, porque nele o homem se aceita a si mesmo, com a sua própria humanidade, com a própria dignidade e a própria missão” (Carta Apostólica Salvifici Doloris, de João Paulo II, sobre o sentido cristão do sofrimento humano, nº 31).
O sofrimento faz parte, certamente, do mistério do ser humano, que é impenetrável, pois só à luz do mistério do Verbo Encarnado, o homem se manifesta plenamente ao homem e descobre-lhe a sublimidade da sua vocação. À luz de Cristo, embora particularmente dramático, o sofrimento humano é indispensável, porque bem-aventurante. “Por Cristo e em Cristo se esclarece o enigma da dor e da morte” (GS 22). “O mistério da Redenção do mundo está radicado no sofrimento de modo maravilhoso; e o sofrimento, por sua vez, tem nesse mistério o seu supremo e mais seguro ponto de referência”. /…/ “Com Maria, Mãe de Cristo, que estava de pé junto à Cruz, nós nos detemos junto a todas as cruzes do homem de hoje” (SD 31).